quarta-feira, 19 de maio de 2010

A escola da impunidade - por Douglas Fersan



Perdeu-se no tempo quem acredita na existência de uma escola destinada a ensinar somente conceitos científicos e normas gramaticais. Não existe mais aquele espaço, tanto físico quanto intelectual, onde os jovens, sentados em suas desconfortáveis carteiras, ouviam atentamente um mestre despejando seu conhecimento para que depois o reproduzissem de forma escrita ou oral. Essa escola não existe mais e, embora os saudosistas vivam lamentando o seu desaparecimento na poeira do tempo, ela é coisa do passado, gostem ou não.
A escola de hoje tem outra missão: a de construir o conhecimento – e aqui não me refiro apenas à teoria construtivista, mas ao sentido mais amplo que o verbo construir pode assumir – e formar cidadãos completos.
A dinâmica social do final do século XX e início do XXI é outra. A mulher não é mais o ser passivo, que ficava em casa à espera do marido e cuidando apenas dos afazeres domésticos e da educação dos filhos. A nova face da sociedade exige da mulher um papel economicamente ativo, o que a obriga a ficar menos tempo com os filhos. E esse pensamento não diz respeito apenas à mulher, mas à família como um todo. A participação da família no processo de socialização do indivíduo é menor hoje do que há décadas atrás.
A tarefa de transmitir valores foi transferida para a escola – outro importante agente de socialização, porém com novas características. Assim, não existe mais o professor, o transmissor de informações. Hoje existe o educador, e o profissional da educação que não aceita essa situação perdeu o trem da história. Educar não é apenas compartilhar conhecimentos. Educar é trabalhar arduamente na formação ética, moral e intelectual do educando, transformando-o de indivíduo em cidadão.
É certo que a maioria dos educadores estão cientes da amplitude de sua tarefa, mas até que ponto existem condições legais para o sucesso dessa empreitada?
Sem cair no velho discurso da inversão ou ausência de valores imposta pela sociedade e pela mídia, sabemos que nossas mãos estão atadas quando a tarefa é estabelecer limites – os limites do bom senso, do respeito ao próximo e da civilidade. Não se trata também do velho discurso que enfatiza as punições como forma de doutrinar a criança e o jovem; mais uma vez é importante lembrar que as coisas mudaram e que já não se acredita na eficiência de tais métodos, porém é preocupante o que se vê nas escolas.
É o grande dilema em que se encontram os educadores, vítimas de um sistema que prega a impunidade. Nem mesmo um sistema de “meritocracia” é possível aplicar, já que o sistema de progressão continuada foi deturpado até se transformar em promoção automática, em detrimento da qualidade de ensino. As crianças e adolescentes, competitivos por natureza, não encontram estímulo nem mesmo para obter boas notas.
Por outro lado encontramos docentes e gestores completamente perdidos diante de problemas graves que assolam as escolas, como a violência, a ausência de limites e o bullying. Não adianta querer maquiar a situação e dizer que tudo vai bem nas escolas e que essas situações são naturais.
Não são. É estado de patologia total, e o que fazer para contar essa onda nociva que contamina os jovens, se as ações esbarram em legislações que não educam, mas corrompem e transformam a escola numa instituição que não informa nem forma, mas deforma?
Documentos como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e similares são necessários, mas não podemos deixar que essa necessidade crie jovens isentos do senso de responsabilidade sobre os próprios atos. Há quem diga que nos próprios documentos existem instrumentos sócio-educativos para corrigir falhas e abusos, mas não vivemos no país das maravilhas e sabemos dos entraves que existem para que eles funcionem. Assim, educadores e gestores se tornaram reféns dessas legislações, e os jovens, que deveriam absorver valores e responsabilidades, passam a conviver e a crer na impunidade que impera nas instituições de ensino e, pior ainda, externam esse sentimento para além de seus muros, crendo piamente que nunca nada lhes acontecerá. É quando encontram a dura realidade das ruas, que apesar de tão presente nas escolas, não foi ensinada por elas.
Já passou do momento de refletir e discutir sobre tais questões, não porque se acredita numa política de punições, e sim porque a sociedade espera que a escola forme cidadãos honestos e cientes de seus deveres perante o outro. A civilidade e a responsabilidade civil deveriam ser incluídas nos currículos escolares, como fator de formação de um país digno de se viver.
A escola deve ser o local onde aprendemos e ensinamos a responsabilidade, e não a impunidade.

Douglas Fersan - Sociólogo e Educador.
19/05/2010.